O Encontro entre o Sagrado e o Profano
O Encontro entre o Sagrado e o Profano
Olha-se Amarante e tem-se uma impressão muito nítida de que é o religioso que infunde caráter à cidade. Talvez a dimensão que ganha, no conjunto urbano, o monumental convento de São Gonçalo. Talvez a proximidade do rio e da serra, habitat das divindades de homens de outras eras. Talvez as duas coisas juntas. Seja o que for, a ideia que se colhe é mesmo essa: estamos num lugar que se define pelo religioso. A história não desmente esta impressão, antes a confirma. Amarante, por assim dizer, nasce quando chega a esse local um pregador com forma de santo.
É a própria história a confirmar o caráter religioso e – pode dizer-se – sagrado de Amarante. Afinal de contas, em Amarante celebra-se a vida do milagreiro, santo “casamenteiro das mais velhas” – São Gonçalo. Recue-se ao século XIII, quando o concelho acolheu o frade dominicano. Frei Gonçalo chega com espírito evangelizador. Quer abençoar o matrimónio e a união, proteger os mais desfavorecidos, espalhar a fé. A sua fama de santidade cresce e Amarante também. Gonçalo vai atraindo cada vez mais fiéis que querem vê-lo e ouvi-lo, sedimenta-se, assim, o pendor religioso que engrandeceria Amarante.
A São Gonçalo dever-se-á a construção da primeira ponte que ligou as duas margens do Tâmega. Mas poder-se-á dizer que o pregador ergueu outra passagem. Uma que não se vê, mas que se sente. Uma travessia entre o sagrado e o profano. A crença de que o frade não deixaria as mulheres mais velhas sem marido encontra o seu expoente máximo nos contos e nos doces criados “em honra” do santo.
“São Gonçalo de Amarante/Casai-me que bem podeis/Já tenho teias de aranha/ Naquilo que vós sabeis”. Estes versos são um exemplo do binómio amarantino. Pratica-se a devoção, fazendo – ou dizendo, neste caso – o profano. O mesmo é aplicado aos doces de São Gonçalo. Símbolo de fertilidade, têm uma forma fálica e surgem para representar as preces daquelas que anseiam um noivo.
Este diálogo entre o sagrado e o profano toma forma, igualmente, pelo famoso casal de diabos de Amarante. Acarinhados por todos, os mafarricos estiveram por muito tempo no Convento de São Gonçalo e eram figuras pouco católicas, quando comparadas com os santos do mosteiro. Dito por outras palavras, de sagrado, nada tinham. Quando aquelas figuras, em madeira, foram queimadas, na sequência das invasões francesas, o povo não se conformou. Por vontade e saudade, pediu-se uma réplica dos diabos, que nasceu pela mão de António Ferreira de Carvalho. As réplicas encontram-se, hoje, no Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso.
Diz a lenda popular que, a 24 de agosto, o diabo anda à solta. No concelho nortenho, para se fazer jus à crença, prestar tributo àquele casal, as figuras saem à rua. E o povo também, vestido de diabo. Hoje, os mafarricos são elevados aos olhos dos devotos. Deuses para uns, anjos para outros.
É justamente em manifestações de cultura deste cariz, em festas e romarias, que Amarante ganha ainda mais vida. A fé expressa-se de forma peculiar, ao aproximar o religioso, o sagrado, do profano, em rituais que poderiam parecer contraditórios, mas não o são – revelam apenas criatividade e, mais do que isso, tradição.