Um beato com fama de santo: “S. Gonçalo, história ou lenda”?
Nicolau Ribeiro
Em 1995, esta pergunta pareceu inquietar muitas almas amarantinas, por remeter para a possibilidade de o padroeiro de Amarante não ter existido. E, por isso, a Igreja de S. Gonçalo quase que encheu de gente ávida de assistir à Conferência que o Padre Arlindo Magalhães, numa tarde de janeiro, ali proferiu, e que havia sido anunciada através de cartazes e de jornais, alguns dias antes.
Muitos devotos do “santo” (explicaremos a razão das aspas mais adiante) terão visto naquela questão uma afronta, mostrando-se dispostos a não darem tréguas a descrentes, a irem à luta, a mostrarem os milagres em que acreditavam, a virarem os hereges do “avesso”. E os céticos, esses, ansiosos por poderem pôr a cabeça de fora, esfregavam as mãos e, à entrada para a Conferência, ensaiavam já um “eu não dizia”?
A pergunta sobre se S. Gonçalo havia, ou não, existido, era, afinal, o ponto de partida para a Tese de Doutoramento do Padre Arlindo Magalhães, à qual ele se propunha responder afirmativa ou negativamente, mediante as provas (documentais) existentes e a que pudesse ter acesso.
Porém, logo no início da sua intervenção, o clérigo tratou de, de forma lapidar, sossegar os presentes, independentemente do lado em que estivessem, referindo-se assim ao “santo” (ainda não é agora que explicamos as aspas): “A historicidade da sua figura pode ser até uma questão secundária ao lado da realidade inquestionável da magnitude do seu culto”.
Ou seja, como diria a voz popular, “se não existiu, ainda bem que existe”. Porque, na verdade, ninguém questiona o culto que lhe é feito e que, sem ter uma dimensão universal, é realidade em várias cidades portuguesas e também no Brasil (14, ao todo), onde, em alguns casos, como no Ceará, é tido como violeiro por, diz-se, ter espalhado a fé “cantando e tocando a guitarra portuguesa” (sabemos bem como os brasileiros são dados à efabulação…). No Estado do Rio Grande do Norte, ao lado de Natal, existe uma cidade que se chama “S. Gonçalo do Amarante” e o Estado do Rio de Janeiro também tem um município com o seu nome. No Estado do Rio Grande do Sul corre um rio chamado S. Gonçalo.
“Em Amarante, S. Gonçalo é celebrado duas vezes por ano. A primeira a 10 de janeiro, quando se evoca a sua morte; e a segunda no primeiro fim de semana de junho, quando a cidade se enche de romeiros movidos pela crença e pela folia, numa mistura única de religioso e profano”.
Não vamos enunciar aqui a que conclusões chegou, na sua investigação, o Padre Arlindo Magalhães (a Paróquia de S. Gonçalo tem à venda um livrinho que talvez o ajude a encontrar a resposta), mas, antes de mais, deixe-nos explicar as aspas que pusemos na palavra santo. É que, em boa verdade, à luz do Direito Canónico, Gonçalo não é santo. Os seus (três) processos de beatificação – que o reconheceram como homem virtuoso, bem-aventurado… – foram concluídos, mas a Igreja Católica não avançou para a canonização (santificação) por… Pois, não se sabe, ainda que, nestes casos, a explicação comum seja a ausência de provas de milagres realizados.
O que, para quem é devoto do “beato” Gonçalo, é um pormenor de somenos importância, lembrando sempre que o Papa Júlio III concedeu, em 1551, que se lhe tributasse culto público. E o importante é mesmo o culto. Aqui, ou no Brasil.
Em Amarante, S. Gonçalo é celebrado duas vezes por ano. A primeira a 10 de janeiro, quando se evoca a sua morte; e a segunda no primeiro fim de semana de junho, quando a cidade se enche de romeiros movidos pela crença e pela folia, numa mistura única de religioso e profano.
E vai-se ao junho. “Ir ao junho” é desfrutar do fogo de artificio, subir ao coreto e espreitar a banda, acompanhar as arruadas e os despiques de bombos, envolver-se nas rusgas, é ir para casa quando o sol raiar. É molhar os pés no Tâmega, montar uma guiga e olhar a ponte ao contrário. É entrar na procissão, fé marcada a compasso com a filarmónica, oferecer cravos ao beato, é ser mulher e puxar-lhe a corda do hábito, pedindo marido, com a promessa de que o primeiro filho se chamará Gonçalo. É estreitar de abraços os amigos de fora, que vieram para festa, e que se recebem com verde e presunto. É subir do Arquinho a Santa Luzia e olhar de soslaio as barracas dos doces e reinar com o tamanho dos de S. Gonçalo, alguns para cima de metro, que a imaginação e a ironia não se medem aos palmos.
“Ir ao junho” é viver Amarante. É entrar nas tradições e nas vivências do povo que habita a terra e que celebra, orgulhoso, a sua cultura e identidade. E as suas referências.