O Rio Olo

Nicolau Ribeiro

De mim, costuma dizer-se que sou a “espinha dorsal” da rede hidrográfica do Parque Natural do Alvão. E é verdade. Broto do granito, a 1 280 metros de altitude, próximo de Lamas de Olo, e, por algum tempo, serpenteio as rochas, vagaroso e esguio. No verão, sobretudo, que no inverno tenho até alguma dificuldade em desviar-me das fragas que a Natureza ali colocou, sabe-se lá se propositadamente para me moderar o passo e preparar-me para uma viagem de 36 quilómetros que, chegando a Ermelo, me há de obrigar a cuidados redobrados.

Pouco depois de Lamas de Olo, onde costumo espraiar-me nos campos, transformando-os em lameiros de pasto farto para o gado da aldeia, regresso ao leito. E cá vou eu. Em breve, hão de juntar-se a mim, entre outras, as ribeiras de Fervença e do Vale Longo e, já depois de Ermelo, o Sião. O meu caudal engrossa. No percurso, hei de dar colo a mais riachos e fios de água. Será assim até que me encontre com o Tâmega, no Borralheiro, em Amarante.

Nesta caminhada dou guarida a peixes, trutas, sobretudo, e acolho lontras; mato a sede a aves que habitam nas minhas margens, e delicio-me com o voo da águia real; sou íntimo de javalis e texugos que aparecem das encostas, onde há coelhos e lebres; e há dias em que sou visitado por corços, embora a floresta seja a sua casa. Dou abrigo a sardões e lagartos d’água e em mim esconde-se a víbora cornuda.

Cruzo-me com homens e mulheres que moram em aldeias da serra. Vêm de Arnal e Ermelo, onde habitam casas de granito e xisto, e criam gado. Procuram-me porque a minha água lhes torna férteis os campos, onde alimentam os animais que não vão à serra; semeiam e colhem cereais que hão de ser farinha, feita em moinhos de rodízio com mós de granito que eu faço rodar.

É assim em todo o meu percurso, tranquilo, às vezes, agitado outras, mas sempre entusiasmante. Passada Ermelo, e com a aproximação às Fisgas, há dias em que quase que gelo. Sinto arrepios, confesso. Afinal tenho pela frente um desnível de 400 metros, que termina numa queda abrupta, de cortar a respiração. Mas, à medida que a velocidade das minhas águas aumenta, fico com vontade de me deixar ir e sinto-me levitar. Deslizo por rochas quartzíticas com mais de 480 milhões de anos. Foi a sua fratura que permitiu que nelas me tenha “enfisgado”.

“(…) De mim, muitos dizem que sou “um dos mais limpos” rios da Europa, com uma biodiversidade que precisa ser vivida, usufruída, mas também preservada. O desafio é usar-me de forma sustentável, desfrutando responsavelmente do que tenho para oferecer”.

Galgadas as Fisgas, daí a nada entro em território de Amarante. À aproximação de Mouquim, revejo a ponte de arame que as gentes da aldeia, e outras vindas do centro de Rebordelo, usavam nas suas deslocações para atravessarem o meu leito. Iam trabalhar na floresta, à serra da Meia Via, ou nas Minas de Vieiros, que ocuparam muitos braços até à década de setenta do século passado. Encravada entre montanhas, diz-se da aldeia que um microclima ali gerado influencia favoravelmente a sua agricultura e, sobretudo, a produção de vinho. Mas também de mel, por as abelhas poderem dispôr de flora abundante e variada.

De Rebordelo (Nossa Senhora das Neves de Rebordelo) sei ser de fundação antiga, estando já constituída do século XIII para o século XIV, nos confins do Julgado ou Terra Medieval de Gestaço, exatamente entre o Tâmega e eu. E também que o ponto mais alto da freguesia se designa, apropriadamente, de Cristas, com rápidos declives que terminam quer nas minhas margens, quer nas do Tâmega. Do lado oposto a Mouquim, a povoação de Granja indica uma ação modificadora da paisagem por parte dos Monges de Cister, a partir do século XII.

Quem vive em Rebordelo tem a sua economia assente na agricultura e na produção de madeira, estando o seu artesanato ligado à cestaria e à tecelagem. A Festa em honra de Nossa Senhora das Neves realiza-se a 5 de agosto, ou no domingo mais próximo. Em Novembro, a freguesia recebe muitos forasteiros para a Feira do Caldo das Coibes, uma sopa substancial, calórica, feita com ossos da assuã e que é uma tradição de Rebordelo associada ao frio e a trabalhos duros na agricultura e na floresta.

Algum tempo depois e chego a Canadelo. Aqui, modero a passada, espalho os meus seixos e alargo-me no açude que, de verão, muitos procuram para se banhar. Vêm da aldeia, que então se enche de emigrantes, mas há também muitos forasteiros que apreciam as minhas águas limpas e frias. A todos acolho entusiasmado e fico feliz por me usarem para um mergulho, para se refrescarem ou por disporem do meu leito para atividades desportivas: canoagem e rafting; ou as minhas margens para caminhadas e BTT.

De mim, muitos dizem que sou “um dos mais limpos” rios da Europa, com uma biodiversidade que precisa ser vivida, usufruída, mas também preservada. O desafio é usar-me de forma sustentável, desfrutando responsavelmente do que tenho para oferecer.

Falemos, então, de Canadelo. Está classificada como “aldeia preservada” e esta é uma designação que lhe assenta bem. A arquitetura vernacular do Marão e Meia Via está ali bem representada, com casas feitas de xisto, ladeando ruas empedradas, de declive acentuado.

Infelizmente já lá não mora muita gente. O fecho das minas da serra, a ausência de trabalho na floresta e uma agricultura apenas de subsistência levaram-lhe muitos habitantes. No Natal e no verão há outros tantos que regressam, orgulhosos do sítio onde nasceram: vêm por S. Pedro, que tem romaria a 29 de junho, e revivem a aldeia: as pedreiras e os fornos de calcário, a levada que lhes abastece os campos de água, as alminhas; e revivem tradições: os jogos da malha e da sueca, às vezes do pau; os bailes e as desgarradas.

E matam saudades da comida tradicional, feita de cabrito e anho criados na serra e assados no forno; do cozido à portuguesa com tronchuda que a geada tornou tenra; de arroz de cabidela. E das carnes de porco com cura na salgadeira ou fumadas por cima da lareira. Come-se assim em todas as aldeias por onde passo, sendo que nas do Alvão também se aprecia a carne de vitela, feita naco ou posta.

“Situada já no território de Fridão, a Central Hidroelétrica do Olo funcionou até à década de 1980, sendo abastecida de água por um canal com origem no açude construído propositadamente cerca de um quilómetro a montante, e cuja albufeira é utilizado como zona de banhos. O edifício da Central e o seu equipamento foram vandalizados, mas a minha esperança é que, conforme vou ouvindo, ali se crie uma área museológica que evoque aquela minha mini-hidrica!”

Sigo o meu caminho. Daí a nada estou em Olo, uma freguesia a que dei nome e que tem S. Paio como orago. Está muito ligada à florestação da serra do Marão, iniciada na primeira vintena do século XX, e à exploração mineira, atividades que empregaram muitos dos seus habitantes, que tinham na agricultura uma atividade complementar, muitas vezes feita pelas mulheres, que também pensavam o gado e tratavam das lides de casa.

Terra de tradições, há uma que, todos os anos, ali se revive. Durante dois dias, no fim de semana que antecede o Carnaval, o centro da freguesia veste-se de gala para a Feira das Papas, revisitando-se um prato tradicional da gastronomia popular, fornecedor de energia para mão de obra possante. Com farinha moída em moinhos situados nas minhas margens, servem-se papas de couves e de nabiças. E também de sarrabulho, porque é Carnaval e a data se faz com particularidades gastronómicas baseadas na matança do porco e no aproveitamento das suas carnes.

Tempos houve em que, sobretudo no inverno, a força das minhas águas foi usada para fazer rolar troncos de árvores que madeireiros cortavam na serra e assim faziam chegar às serrações a jusante. A mesma força que António Lago Cerqueira usou, a partir de 1918, para fazer produzir energia elétrica, que haveria de abastecer a então vila de Amarante, que viu a sua iluminação pública a petróleo ser substituída pela iluminação elétrica, apenas 30 anos após a eletrificação de Nova Iorque.

Situada já no território de Fridão, a Central Hidroelétrica do Olo funcionou até à década de 1980, sendo abastecida de água por um canal com origem no açude construído propositadamente cerca de um quilómetro a montante, e cuja albufeira é utilizado como zona de banhos. O edifício da Central e o seu equipamento foram vandalizados, mas a minha esperança é que, conforme vou ouvindo, ali se crie uma área museológica que evoque aquela minha mini-hidrica.

De Fridão, sei que uma boa parte da sua economia assenta no que extrai da serra, designadamente madeira. Noutros tempos, a carqueja representou também um acrescento na economia de muitos lares: as mulheres recolhiam aquela planta, que, depois, vendiam às padarias, para ser usada na cozedura do pão. A tradição da tecelagem, que vem de longe, deixou sementes em Fridão, onde, ainda hoje, constitui uma atividade que dá emprego a muitas mulheres.

Os habitantes de Fridão celebram S. Faustino a 15 de fevereiro ou no domingo mais próximo e têm em janeiro a Feira dos Rojões, um prato típico de inverno que celebra a “matança do porco”.

Quase nem dei por isso, mas corro já em território de Vila Chã do Marão. O meu percurso aproxima-se do fim e caminho por entre vinhas, lameiros e campos plantados de milho. Chegado aqui, sinto um friozinho que me varre a água, feito já de nostalgia e saudade. Espera-me o Tâmega, para juntos fazermos a caminhada até Entre-os-Rios, onde nos acolherá o Douro.

De Vila Chã, sei ser o seu povoamento muito anterior à ocupação romana. Na freguesia existe o Monte da Pedra Cavaleira, onde se julga ter havido uma edificação do tipo dolménico e terá vivido uma população castreja. No Monte de Santa Cruz, foram achados túmulos romanos

Período importante da história de Vila Chã do Marão foi aquele que coincidiu com as invasões francesas, sendo daqui alguns dos heróis que, em 1809, bravamente se opuseram às tropas invasoras, nas minhas margens, num local que ficou conhecido como “Vale dos Invasores”. Aqui ocorreu uma importante batalha que impediu os exércitos de Napoleão de chegarem a Amarante.

O orago da freguesia é Santo Estevão, que se celebra um dia depois do Natal, a 26 de dezembro. Em setembro, a freguesia reúne-se na Festa das Colheitas e evoca S. Miguel com uma grande desfolhada, realizada no seu maior canastro.

E pronto. Já ouço o chamamento do Tâmega, que espera a minha chegada e me recebe calmo. Mergulho no seu leito, onde me espraio e me deixo levar, depois de uma descida mais ou menos apressada, feita em leito estreito.

Renovo-me todos os dias!

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