As guigas do Tâmega
Nicolau Ribeiro
Para que servem os barcos? Para fazer travessias entre margens; para atividades de lazer e passeios nas águas dos rios (e dos mares); para transportar pessoas ou mercadorias, dir-se-á.
E assim é, de facto, independentemente das águas em que deslizam, ainda que assumam características diferentes, conforme os sítios donde são originários, ou para ou como são utilizados. Aveiro tem, na sua ria, os moliceiros; o Douro sempre foi povoado por rabêlos e o Tâmega tem as suas guigas.
Desde que a fotografia foi inventada que qualquer instantâneo sobre Amarante que tenha o rio como elemento evidencia estes pequenos barcos[1], inicialmente, porventura, usados apenas para facilitar a mobilidade da população, mas que, rapidamente, se constituíram como ex-libris de Amarante, passando a integrar a sua identidade e a fazer parte da cultura local.
A literatura sobre esta embarcação é praticamente inexistente, pelo que não é possível traçar-lhe, com rigor, a origem[2] ou funções para que foi criada, embora se possa dizer que a guiga tem utilizações múltiplas: para ir à pesca, para passeios, estando associada, por exemplo, às noivas de S. Gonçalo que, em tempos idos, não dispensariam uma sessão fotográfica “a bordo de uma guiga”; para travessias entre as margens[3] por quem ia tratar de assuntos ou trabalhar ao “outro lado”, como os mineiros que, residindo na margem direita do Tâmega, faziam a passagem para Fridão em guigas, seguindo, depois, para Vieiros.
Os moleiros, por exemplo, usá-las-iam para o transporte de cereal ou farinha de uma margem para a outra, poupando-se, assim, a “grandes voltas”.
Desde há muito, porém, que as guigas estão também associadas à oferta turística de Amarante, sendo um dos seus icons e ganhando procura a partir da primavera, com a chegada dos primeiros dias de sol. Nas margens, há pequenos negócios de aluguer destas embarcações, que são utilizadas para puro recreio, para conhecer a cidade vista do rio e, até, para, nas noites das Festas de Junho, se assistir às sessões de fogo-de-artifício.
Paulo Alexandre Teixeira[4], que investigou as guigas no âmbito de um trabalho académico, escreveu que “apesar de ser considerada um dos ex-libris da cidade e presença obrigatório nas suas coleções de postais, pouco ou nada se sabe sobre as origens da guiga ou de como esta embarcação de lazer apareceu nas margens do rio Tâmega”.
Daniel Ribeiro, arqueólogo e investigador, acredita que a guiga terá chegado a Amarante na Idade Média e que a sua construção foi inspirada nos barcos viquingues, de fundo plano.
As técnicas usadas na construção das guigas mantêm-se, até hoje, e terão sido passadas oralmente ao longo dos séculos, já que não se conhece qualquer documento, desenho ou projeto que instrua ou defina regras de construção. Este facto não deixa de tornar esta embarcação “única, elegante e diferente de todas as outras”, como considera António Patrício, citado por Paulo Alexandre Teixeira Teixeira[5].
Mas, então, o que é que torna a guiga um barco singular? Desde logo, explica Paulo Alexandre Teixeira, “o facto de que a popa é proa e a proa é popa”. Ora, “sendo iguais, o remador pode decidir na direção em que se desloca: para trás (a melhor opção) ou para a frente. Por seu lado, os remos trabalham a partir de um ponto ligeiramente distanciado da meia-nau e do assento do remador. A combinação destes pormenores confere à guiga um dos seus aspetos mais venerados, por assim dizer, por quem a conhece melhor: ao deslocar-se, a proa ergue-se ligeiramente, a popa afunda-se e a embarcação, qual animal empinado, desliza como uma folha na água”.
Mas, há outros pormenores que acentuam a singularidade da guiga, explica: “(…) tanto proa e popa (construídas de carvalho, o restante em pinho) são fechadas por uma cobertura em arco que, aliás, se irá transformar num importante pormenor de segurança em versões mais modernas”.
“Em termos de medidas, escreveu aquele jornalista, o desenho geralmente cumpre as regras que se estabeleceram, não se sabe por quem nem quando: não mais de cinco assentos, entre os quatro e os cinco metros de comprimento, um de largura e quarenta centímetros de altura. Mas os detalhes não se esgotam aqui: na pintura, a tradição manda que se alterne entre o branco, comum a quase todas, e uma cor contrastante à escolha do construtor e com a adição de um importante detalhe estético: uma pequena faixa horizontal preta, ao longo da linha de água, para dissimular a sujidade que se vai acumulando naquela zona”.
As guigas de chapa metálica
Noutros tempos construídas em oficinas de carpintaria, de modo artesanal, as guigas do Tâmega passaram, a partir de determinada altura, a ser feitas em chapa metálica, mantendo o seu desenho tradicional, mas crescendo 20 centímetros. Esta não foi, porém, a única nem a maior alteração que a embracação sofreria continuando, embora, a manter a estética inicial. Segundo escreveu Paulo Teixeira “popa, proa, tubagem do cavername e até os assentos traseiros foram selados, originando caixas de ar estanques que evitam o afundamento da embarcação, caso se encha de água”.
Mas, explica o autor, o maior ganho traduziu-se no peso que, no mínimo, passou a ser 1/5 ou menos do das embarcações de madeira. E, sendo em chapa, mais estável e, por isso, mais fácil de remar, a nova guiga pode ser retirada do rio em altura de cheias e devolvida à água sem a necessidade de grande manutenção, ao contrário das de madeira que, secando, necessitavam de ser calafetadas antes de voltarem ao rio.
De chapa ou de madeira, as guigas convidam a um passeio no Tâmega. Na sua deslocação a Amarante, não deixe de conhecer e experimentar estas pequenas embarcações, e de sentir todas as sensações que a brisa e as águas do rio proporcionam.
[1] Eduardo Teixeira Pinto documentou, como só ele sabia, em dezenas de fotografias, envoltas em névoa, as guigas do Tâmega
[2] Autores como Daniel Ribeiro admitem que a guiga de Amarante é um sucedâneo dos barcos vinquingues.
[3] A União de Freguesias de Amarante organiza, anualmente, a marcha “Caminhos do Tâmega”, cujo percurso inclui a travessia do rio de guiga na zona do Mercado Municipal de Amarante.
[4] In AMARANTE MAGAZINE, edição nº 33 / verão de 2017, pp 70-73.
[5] Idem