Amarante: “impressões” literárias
Nicolau Ribeiro
“O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite… É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos”.
(José Saramago, in Viagem a Portugal)
É assim com Amarante, que não é terra de uma só leitura ou perceção. Conhecê-la, entendê-la, vivê-la, em suma, implica percorrer-lhe os caminhos uma e outra vez, tocar-lhe e olhá-la em horas e dias diferentes, quando o sol nasce ou chega ao ocaso, ou os ventos do Marão a visitam.
Não há uma Amarante. Há tantas quantos os ciclos da Natureza, e outras dentro deles, todas diferentes em cada ano. Aqui, a Natureza impõe-se, diversa, e faz-se anunciar antes da chegada, a cada quilómetro percorrido, como constatou José Saramago.
“Atravessar a serra do Marão, de Vila Real até Amarante, deveria ser outra imposição cívica como pagar os impostos ou registar os filhos (…)”, escreveu o Prémio Nobel da Literatura (idem).
O Marão, “de mística paisagem”, por onde deambulava, amiúde, Teixeira de Pascoaes, “onde o céu se casa intimamente com a terra”, escreveu (in Marânus).
Ou, como do Marão disseram Maria Angelina e Raul Brandão: “Fiar estopa, tecer chapéus, tratar do gado, morrer, viver, é transitório: só a serra se impõe na sua eternidade de pedra. (…) Toda a gente que vive com o Marão se apaixona por ele e por estes povos da serra, descendentes dos que os romanos expulsram dos altos (…).
O Marão de aldeias de casas feitas de xisto e granito, espigueiros e eiras em que o milho amarelece e seca; onde cada morador é comparte do território e usufrui do que os baldios dão, seja a lenha que a lareira consome no inverno, quando a neve chega, ou os pastos e as zonas de pastoreio onde se alimenta o gado: as cabras, as ovelhas ou a vaca maronesa. Aldeias onde ainda se ouve o acordeão e a rabeca chuleira, se canta ao desafio e se recebe com a Tuna os que em agosto retornam por saudade, de abraço apertado, para provarem o fumeiro, o assado do forno ou o tinto guardado debaixo do lagar. E que sobem à ermida, agradecidos, pagando promessas e, em dia de festa, oferecem o ombro para transportar o andor na procissão.
“Não é impunemente que se nasce em Amarante”, escreveu Agustina Bessa Luís , que também disse que “se um homem é de Amarante, ele não parece de outro lugar” .
Molda-o e dá-lhe “forma”o Marão, mas também o Tâmega, que condicionou e influênciou formas de vida, modos de pensar, que ditou personalidades.
A escritora, de resto, tem uma teoria que explicará os talentos e as figuras que, ao longo dos anos, emergiram em Amarante: de Amadeo de Souza-Cardoso a Teixeira de Pascoaes, a António Cândido e Lago Cerqueira ou a Alexandre Pinheiro Torres.
“Penso, explicou em entrevista (AM, 1994), que, por razões geográficas, climatéricas e outras, se terá fixado aqui uma tribo restrita, um clã intelectualmente desenvolvido, que incluiria mestres, pensadores, professores… Com capacidades que vriam a ser absorvidas”.
Em Amarante, sabemos de cor os açudes, as azenhas, os moinhos, a neblina que, da água, se levanta pela manhã e que foi, porventura, a maior das inspirações do fotógrafo Eduardo Teixeira Pinto. Sabemos da maneira como inspirou artistas e escritores e como faz de quem cá mora cidadãos singulares. Disseram-no, entre outros, Eulália Macedo, tocada pelo “espírito do lugar” e pelas “mulheres da minha [sua] rua”; ou Teixeira de Pascoaes que, no seu Marânus, constatou ter sido quem foi porque teve berço em Amarante.
Ah! se não fosse a névoa da manhã E a velhinha janela onde me vou Debruçar para ouvir a voz das coisas, – Eu não era o que sou. Sem esta terra funda e fundo rio Que ergue as asas e sobe em claro vôo; Sem estes ermos montes e arvoredos – Eu não era o que sou.
A propósito do Tâmega, José Augusto Vieira (1856/1890) escreveu, na segunda metade do século XIX: “(…) Visitada a vila, no que ela tem de mais notável, eu recomendo ao turista que não perca o ensejo de dar um passeio fluvial no poético Tâmega, tão formoso e tão belo, junto de Amarante. (…) Deixar depois o rio, descer pela margem direita até às azenhas dos Moroleiros e subir ao pequeno outeiro superior à azenha de Varziela, é o complemento artístico desse passeio, em que a alma se faz boa (…).
A Natureza, a paisagem, mas também os sabores de Amarante: “(…) Chegava-se à noite, à hora da ceia, uma ceia apetitosa e barata, como não havia em outra parte, da qual os passageiros habitués vinham já contando os prodígios, e para a qual os balanços da diligência nos vinham também, desde há muito, preparando. A toalha estava limpa, fumegava a terrina de canja, o vinho verde pátrio espumava como um rubi fundido nas canecas de faiança clara. E era um devorar, Santo Deus, como se do Porto aqui houvéssemos jejuado os quarenta dias do Evangelho” (in “O Minho Pitoresco”).
De sabores de Amarante escreveram também Aquilino Ribeiro, Bento de Jesus Caraça ou Miguel Sousa Tavares.
(…) O prior dos domínicos, como prenunciou Peixoto, tendo em conta do que se tratava e ao que íam, acedeu de bom grado a hospedá-los nas celas do claustro reservadas aos arcebispos e fâmulos. Homens de escolta e postilhões foram pernoitar a um Zé da Calçada chanfana muito antiga, bem afreguesada de Verão ao bacalhau frito e vinho verde, cujas ancoretas iam, na ponta de uma corda, a refrescar ao Tâmega, que corria logo atrás” (Aquilino Ribeiro, in A Casa Grande de Romarigães).
Distintas entre os doces regionais de Amarante, as lérias chamaram a atenção de Bento de Jesus Caraça, que delas disse:
“As lérias de Amarante não são como as do resto do Universo. Por toda a parte, as lérias são qualquer coisa de desprezível, de sem-valor, qualquer coisa que se dá quando por desfastio não há coisa melhor (…)”.
“Em Amarante, nada disso: é como se se penetrasse num mundo novo, com uma métrica diferente. A léria tem valor e personalidade, não é provocada pelo desfastio, mas pelo apetite, as suas cinco letras mágicas inscrevem-se orgulhosamente na frontaria de uma casa e em caixas especiais de embalagem. E se num estado psicológico de comunhão com o absoluto, um pobre mortal tem, de súbito, a inspiração divina de saborear o manjar de eleitos, entra numa confeitaria, puxa de seis tostões e diz: ‘Ora dê-me cá uma léria’! Como esta frase seria incompreensível no Universo extra-amarantino”! (in Notas de Viagem/Seara Nova).
Miguel Sousa Tavares viveu parte da sua infância numa aldeia de Amarante, uma experiência que terá marcado a sua personalidade. No seu livro “Cebola crua com sal e broa” (2018), escreveu: “À medida que vamos reconstituindo o fio à meada e indo lá atrás de tudo, é fácil darmo-nos conta de que muito do que nos viria a marcar a vida toda começou cedo e, às vezes, sem darmos por isso e sem o termos associado a qualquer coisa que nos despertou na infância”.
E, mais adiante, a propósito do seu convívio com os trabalhadors da Quinta do Carvalhal – propriedade da “Tia Miquelina”, sua madrinha e irmã de Teixeira de Pascoaes – onde morou dois anos: “(…) pontualmente, ao meio dia, os homens reuniam-se no ‘refeitório’. E quase todos os dias o almoço era o mesmo: caldo verde e arroz de feijão. Com grande constragimento da casa, eu, o ‘menimo Miguelzinho’, adorava juntar-me a eles e acompanhá-los no caldo verde e arroz de feijão. Isso, mais a minha merenda de todos os dias – cebola crua com sal e broa – é escusado dizer que ficaram para sempre como dos meus pratos preferidos. Nada do que vivemos na infância é a feijões, só mesmo o arroz”!
Camilo Castelo Branco (1825/1890), que viajava com frequência entre Trás-os-Montes (Vila Real) e o Porto, descansava em Amarante, referindo-se-lhe em ocasiões várias.
(…) “Há poucos anos que eu jorneava de Vila Real para o Porto, e cheguei, quebrado de corpo e alma, a uma póvoa escondida nos fraguedos do Marão, chamada Ovelhinha. (…) Quando descavalguei, na Ovelhinha, devolvi o garrano ao proprietário e procurei quem me alugasse cavalgadura, menos poitrinaria até Amarante. Voltando à estalagem (…)” (in Memórias do Cárcere).
Ou: “Pernoitamos em Amarante, numa estalagem, onde eu, anos antes, tinha visto três belas criaturas, filhas de uma grave e redonda mulher, dona da hospedaria”.
Ou: “Ao amanhecer do dia imediato fui para Amarante (…)” (in Vinte Horas de Liteira)
Ou: Fui na diligência para Amarante, e ali encontrei cavalheiros que me acompanharam ao pomar dos celestes pessegos do meu amigo Vasco Peixoto (Idem).