Amadeo: o segredo mais bem guardado da arte moderna

Nicolau Ribeiro

Quando, no contexto da comemoração dos cinquenta anos da Fundação Calouste Gulbenkian em França, a curadora Helena de Freitas reuniu com Laurent Salomé, Diretor do Grand Palais, para lhe propor uma exposição de obras de Amadeo de Souza-Cardoso, contou a própria, foi “recebida com uma interrogação”, que expressava dúvida.

Na posse do catálogo raisonné do artista e do que resultou da exposição “Diálogos de Vanguarda”, que folheou lentamente, a interrogação ganhou um sentido diferente: “Mas, afinal, quem é este artista e como é possível eu não o conhecer?”, intrigou-se.

Amadeo de Souza-Cardoso nasceu em Manhufe (lugar da freguesia de Mancelos, Amarante) em 1887, para onde regressou, vindo de Paris, em 1914, com sua mulher, Lúcia Pecetto, que havia conhecido seis anos antes.

Ali, no seu ateliê, pintava todos os dias, em ritmo intenso. Em 1916, expôs pela primeira vez no nosso país, no Salão de Festas do Jardim de Passos Manuel, no Porto, apresentando 114 obras com o título genérico de “Abstraccionismo”. A mostra constituiu um escândalo para o Porto tradicional e burguês de então e Amadeo foi mesmo agredido, necessitando de tratamento hospitalar.

No final daquele ano, Souza-Cardoso levou às salas da Liga Naval, em Lisboa, a exposição que apresentou no Porto e o escândalo repetiu-se. Almada Negreiros, que entretanto conhecera o pintor, é, porém, uma voz dissonante e publica, logo a seguir, um folheto em que afirma que a exposição “é o documento conciso da Raça Portuguesa no séc. XX” e que Amadeo de Souza-Cardoso “é a primeira Descoberta de Portugal na Europa do séc. XX“.

“(…) Em 1913 expõe na primeira mostra de arte moderna dos EUA, que se realizou em Chicago e Boston, depois de, no ano anterior, ter publicado XX Dessins e desenhado e ilustrado o manuscrito de La Legend de Saint Julien L’Hospitalier e de estar presente no XXVIII Salon des Independents e no X Salon d’Automne”.

O futuro de Amadeo teria sido, por vontade da família, a arquitetura, cujos estudos chegou a iniciar em Lisboa, na Escola de Belas Artes. Todavia, desmotivado com as vivências na capital, decidiu ir para Paris, onde, durante alguns meses, frequentou, no Boulevard Raspait, os ateliês preparatórios para a inscrição naquela disciplina. Porém, depois de um período de alguma incerteza, desinteressou-se pelo curso de arquitetura e passou a dedicar-se à caricatura.

E é assim que, em 1909, Amadeo de Souza-Cardoso estava já inscrito na Academia Viti, onde foi aluno do pintor espanhol Anglada Camarasa. 1909 é, de resto, um ano decisivo na sua vida, ano em que, segundo alguns críticos, nasce definitivamente para a pintura. Conhece outro Amadeo, italiano de nascimento, que viria a ser seu grande amigo e pintor extraordinário: Amadeo Modigliani. Em 1910, passa três meses em Bruxelas, onde é seduzido pela pintura dos primitivos flamengos.

Os anos seguintes são, para Amadeo, tempos de intenso trabalho e de pesquisa permanente. Expõe no XXVII Salon des Indépendents e no seu ateliê, com Modigliani. Em 1913 expõe na primeira mostra de arte moderna dos EUA, que se realizou em Chicago e Boston, depois de, no ano anterior, ter publicado XX Dessins e desenhado e ilustrado o manuscrito de La Legend de Saint Julien L’Hospitalier e de estar presente no XXVIII Salon des Independents e no X Salon d’Automne.

Os lugares de Amadeo

Considerado, hoje, como uma “figura ímpar da vanguarda modernista parisiense” Amadeo, deixou uma obra fulgurante, tida como cúmplice de todas as revoluções estéticas do seu tempo e, simultâneamente, absolutamente única e original. A sua morte prematura, aos 30 anos, no final da I Guerra Mundial, te-lo-á afastado da consagração artística e da história de arte internacional, tendo sido, durante muitos anos, “um dos segredos mais bem guardados da arte moderna”, no dizer do historiador de arte norte-americano Robert Loescher.

Ter nascido em Manhufe parece ter sido determinante na obra de Souza-Cardoso, segundo Helena de Freitas, que, em 2018, quando se evocavam os 100 anos da morte do artista, levou a sua obra ao Grand Palais, em Paris – no que pode ter sido o início da definitiva consagração internacional de Amadeo – numa exposição organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian e de que foi curadora.

Para aquela especialista em Amadeo, “o lugar de partida é a primeira marca de identidade do artista e persiste como matriz ao longo das múltiplas etapas do seu trabalho. Mas ‘lugar’ não é aqui apenas paisagem ou representação da natureza”, escreveu, afirmando que “antes engloba aquilo que Amadeo considerava, em simultâneo, ser sua pertença: a paisagem natural, mas também a cultural. E foi sobre ela que exerceu uma ação transformadora no que poderia ser um conjunto de signos conservadores e imutáveis: montanhas e objetos quotidianos, letras de canções e bonecas populares, instrumentos musicais regionais, azenhas, castelos imaginados e interiores domésticos familiares, bosques e tipologias humanas locais”, conclui.

Estes variados elementos, Amadeo representou-os segundo “soluções estilísticas marcadas pelo hibridismo cubista, futurista, órfico e expressionista que percorre a sua obra, numa síntese que rompe o naturalismo com novas cores, movimento e perceções pessoais” (F. C. Gulbenbkian). E a importância da palavra e uso das letras na pintura releva do encontro com as novas práticas artísticas contemporâneas, sendo evidente que Amadeo tem consciência ativa do que é ser “moderno”, não apenas nos temas, mas também nos métodos e técnicas para os tratar.

A Casa da Granja

Manhufe, onde se situava a casa da família Souza-Cardoso, foi, como já se viu, um lugar determinante para Amadeo. Da mesma importância que Paris, por certo, onde se formou para a pintura. A outro nível, Espinho, onde passava as férias de verão e veio a morrer, faz, igualmente, parte do seu roteiro de vida.

A Casa da Granja, em S. Veríssimo (Amarante), construída em 1685, esteve também destinada a entrar na vida de Amadeo. Depois de remodelada na primeira metade do século XIX, voltou a ser intervencionada em 1915, por seu pai, Emídio de Souza-Cardoso, que pretendia fazê-la sua habitação.

Conhecedor disso, Amadeo chegou mesmo a fazer um desenho a nanquim alusivo àquela reconstrução. O desenho era constituído por uma cartela encimada por uma cabeça de canídeo, de perfil, em atitude rompante, ao gosto dos seus “XX DESSINS”, editados em 1912, em Paris.

Vitimado, em 1918, pela gripe espanhola, Amadeo nunca chegaria a habitar a Casa da Granja que, hoje, é sede da Associação para a Criação do Museu Eduardo Teixeira Pinto, configurando-se como um importante pólo cultural, com atividades que envolvem a música, as artes plásticas ou a fotografia.

Para muitos, Amadeo é, ainda hoje, “um diamante por polir”. Calcula-se que tenha pintado para cima de 300 quadros, espalhados por coleções privadas em Nova Iorque, Chicago ou Paris; e pelos Museus Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, e da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Luís Damásio, historiador e estudioso do artista, acha que “é de toda a justiça equipará-lo  com os maiores do seu tempo: Picasso, Braque, Xandinsk, Chagal, Mondigliani, Barncusi, Delaunay ou Matisse”.

Conheça “o segredo mais bem guardado da arte moderna”.
Comece por Amarante e pelo Museu Municipal Amadeo de Souza-Cardoso.

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